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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Ferozes feridas

Pele queimada de sol se retrai ao menor toque
A vermelhidão denuncia a dor
E dor-mir é tormento, impossível.

Pele queimada de sol é frágil e fraca
A mesmo o menor movimento sofre,
Sofre por ter-se tornado sensível.

O mundo, se frio, também queima
Mas momentâneo, apenas, só o contato
Aquecendo-se, pronto, a dor passa

Isto posto, que é que se entende?
É o meio que, feroz, todos destrói,
Ou o corpo que, ferido, se rende?

(19/04)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Domingo agostiniano

Disfarçadamente, ele saiu da sala, esgueirando-se pela porta de trás. Os habitantes da casa estavam muito ocupados terminando de carregar as bagagens para o carro, ou com os olhos fixos, compenetrados, na tela da televisão, que exibia a lamentável programação de um domingo à tarde. Não notaram sua discreta saída, e ele não teria se importado se tivessem, mas preferia assim. Saiu sozinho para o quintal e, tendo apenas ele mesmo por companhia, se sentou na quadra de cimento com as costas na parede, bem debaixo da janela do seu quarto.

Quanto tempo de sua vida ele havia passado ali? Muito, sem dúvida. Passou os olhos pelo quintal, assistindo a uma criança invisível correndo de uma ponta a outra. Ele praticamente ouviu a voz esganiçada de um garoto de dez anos gritando “pokebola, vai!”, e atirou o braço para frente, distraído, como se de fato atirasse uma pokebola. Riu sozinho quando notou seu braço estendido sobre seu joelho e se perguntou o que teria acontecido com o boné que costumava estar sempre plantado em sua cabeça.

A julgar pela forma como o sol iluminava as árvores ao redor (pois era um quintal bem grande), era pouco mais de quatro horas. Ele não sabia dizer as horas com base no sol, apesar de ter tentado aprender, mas aquele horário e aquela luz eram reconhecíveis para ele. Era um horário (e não havia melhor palavra para descrever) vibrante. Todas as cores se realçavam, em especial o amarelo no céu, e ele sentia que o mundo vibrava e que ele vibrava com o mundo.

Ele ficou ali sentado, tendo a si mesmo por companhia, costas contra a parede, braços sobre os joelhos, vibrando em sintonia com o ambiente. Era o seu horário favorito do dia, quando mais se sentia parte inseparável do mundo. Havia tempo que ele não se sentia assim. Tanta coisa mudara desde que ele atirara sua última pokebola, desde que seu boné se perdera, desde que o galho de árvore que ele escolhera com tanto carinho tinha se partido e ele, com lágrimas escorrendo pelo rosto, jogara os pedaços no fogão a lenha e os observara queimarem.

Mais uma vez rindo de si mesmo, ele levou a mão até a testa, como se esperasse encontrar ali a cicatriz em forma de raio que tantas vezes desenhara com canetinha marrom. Quando a tinha desenhado pela última vez? Ele não tinha a menor ideia, assim como não sabia como havia sido a transição entre o boné e a cicatriz, a pokebola e a varinha. Franziu as sobrancelhas; a mão ainda na testa, o cotovelo apoiado no joelho e as costas curvadas. Sentiu um aperto no peito que nada tinha a ver com a posição em que se sentava.

Não devia ter ido até ali. Devia ter previsto aquilo quando saiu para o quintal: aquele horário, aquela luz fria e brilhante sempre o deixava se sentido solene. Ergueu o rosto e olhou ao redor repreensivamente, como se fosse culpa do quintal que ele se sentisse assim. Estava tudo exatamente igual. Talvez um árvore maior do que costumava ser, um pouco mais de mato aqui e ali, mas era indiscutivelmente o mesmo quintal E então ele desfranziu a sobrancelha e se deixou contaminar de novo pela vibração que só ele sentia. A sensação era revigorante e incomparável. Ele voltou a se sentar como antes, com as costas apoiadas contra a parede. O aperto em seu peito diminuiu; talvez tivesse algo a ver com a sua posição, afinal.

Quanto mais ele olhava ao redor, menos seu peito doía e mais livremente ele conseguia respirar, apesar de sua respiração nunca ter sido difícil. Ele voltou a pensar no garotinho com a cicatriz desenhada e o graveto no bolso; o boné enterrado na cabeça, uma mão curvada como se segurasse alguma coisa redonda e a outra mão segurando firmemente um boneco de pelúcia amarela. Ele o via ali, em pé no meio do quintal, recortado contra aquele mesmo cenário, e dessa vez não se sentia solene, nem comprimido entre duas paredes muito próximas, mas livre como não se sentia em muito tempo.

Tempo. Era justamente aquilo que o comprimia, o tempo. O tempo que parecia ter sido muito, infinito, incontável. O tempo que agora parecia ser insuficiente e o sufocava, como se fosse também espaço insuficiente. Ele se sentia perdido no meio de um turbilhão, sem saber como se achar, sem saber onde eram o caminho de que viera, o que devia seguir e o que de fato estava seguindo. E não sabia como descansar, como parar aquele furacão que carregava consigo dentro do peito e que o apertava (como agora percebia) não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora.

E repentinamente a resposta estava ali; sempre estivera ali e justamente por isso era a resposta. Ele teve vontade de rir enquanto olhava para o cenário idêntico às suas lembranças, que começava a perder aquela tonalidade vibrante à medida que o sol afundava mais e mais no horizonte. Ele aproveitou os últimos minutos para acalmar o pulsar acelerado de seu coração e se levantou quando o brilho havia se extinguido por complexo, ainda olhando ao redor. Agora tudo parecia estranhamente incolor e opaco; o por do sol só seria dali a algumas horas, mas ele já sentia como se estivesse escurecendo.

Tempo é mudança, a frase passou pela sua cabeça enquanto ele entrava na sala de novo. Ele olhou por cima do ombro rapidamente, como se esperasse ver o menininho de dez anos correndo, talvez caindo e ralando os joelhos no cimento, e sorriu, sabendo que ali, naquele quintal imutável, ele havia encontrado um refúgio onde podia descansar.