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terça-feira, 26 de julho de 2011

A mulher nua

Um dia, quando tinha 12 anos, eu entrei em casa e encontrei meu pai lendo na sala. Ele era escritor e, com frequência, recebia pedidos de amigos, conhecidos, conhecidos de amigos, para que lesse manuscritos e passasse-os para seu editor se gostasse. Geralmente, antes de passar para o editor, ele passava para mim, um amante de literatura em formação.

Naquele dia, perguntei-lhe sobre o livro; de quem era, se ele estava gostando. Era de uma amiga da filha de uma velha senhora, nossa vizinha, e, de acordo com o meu pai, era um primor de livro. Naturalmente, pedi-lhe que deixasse no meu quarto quando terminasse, mas, ineditamente, meu pai negou. Surpreso, indaguei sobre a razão.

- Esse livro contém uma mulher nua. Você ainda é muito jovem para ver esse tipo de coisa.

Eu era um amante da literatura em formação, mas, entendam, eu era antes um homem em formação. É claro que fiquei louco de vontade de dar uma espiada. Que tipo de detalhes poderia haver ali? Que tipo de descrição tão completa de algo que era para mim tão desconhecido poderia aquele livro fornecer, tão exata que fizesse com que meu pai nunca deixasse o manuscrito ao alcance das minhas mãos?

Aquilo encheu minha imaginação por dias. Na escola, na rua, deitado em minha cama, eu me pegava murmurando frases e construções, uma atrás da outra, tentando adivinhar o que a autora poderia dizer.

Um dia, cerca de uma semana depois, trombei com o manuscrito por acaso. Estava procurando qualquer coisa no armário do meu pai e acabei encontrando-o - era um sinal do destino para que eu o lesse. Ávido de curiosidade, com aquele medo terrível de ser pego que torna tudo melhor, fechei-me em meu quarto e li. E li. E li, páginas e mais páginas, capítulos e mais capítulos, um infindável monólogo sobre uma mulher e os homens que já haviam partido seu coração, ou os erros que ela própria havia cometido e a atormentavam todos os dias.

Parei de ler pouco depois da metade. Já havia desistido da minha mulher nua, mas, principalmente, alguma coisa na forma como a amiga da filha da minha vizinha explicava seus sentimentos mexera comigo. Eu não sabia que se podia sentir tanta coisa ao mesmo tempo, ou por tantas razões, ou de maneiras tão conflitantes.

Um pouco abalado, um pouco frustrado, guardei o manuscrito de volta onde tinha achado, mas meu pai sabia que eu tinha lido. Disse que estava estampado em meu rosto e me repreendeu pela desobediência.

- Mas não tinha nenhuma mulher nua lá! - me defendi, me lembrando das páginas infindáveis do interminável monólogo.

Meu pai desfez sua expressão séria e repreensiva, e abriu um sorriso de quem sabe alguma coisa a mais. Imaginei que ele fosse me dizer qual era a página, ou que ela estava escondida por um código secreto, mas sua única resposta me deixou ainda mais intrigado:

- Eu disse que você é muito novo para ver esse tipo de coisa, não disse?

domingo, 3 de julho de 2011

Como é que se sente saudade?

Não sei muito bem como é que se sente saudade. Saudade pura, só ela, totalmente alojada na minha "magnânima bomba aórtica": não faço a menor ideia de o que é isso. Pra mim não é um sentimento inteiro que se sente num só lugar. Quer dizer, como a gente sabe sequer que está com saudade?

Saudade é silêncio. É o celular que já não toca mais, a conversa dos amigos à qual a gente não consegue mais prestar atenção. É a casa vazia sem o eco das risadas e sem o som do CD preferido, porque traz lembranças demais. É o piano calado, porque não se tem quem toque ou nos anime a tocar. É a falta até dos murmúrios pra gente mesmo, porque não se tem muito o que falar.

Saudade é frio. É a falta do abraço confortável, do casaco emprestado quando esquecemos o nosso. A falta de quem nos cubra durante a noite porque caímos no sono antes de fazer isso nós mesmos, ou de quem nos acompanhe numa taça de vinho durante o jantar. É a falta das palavras carinhosas que nos aquecem por dentro e das confissões embaraçosas que fazem nossos rostos queimarem.

Saudade é um monte de mudança. As fotos que são substituídas, ou que são tudo o que restou. A pessoa que não vai chegar em casa no horário que costumava chegar. Os sábados passados em casa. A cadeira vazia na mesa de jantar. Os objetos pessoais em caixas, não mais no armário.

Saudade é solidão. É estar rodeado de amigos e não saber exatamente quais, se alguém perguntar. É olhar para todos os rostos e buscar apenas um. E nunca mais vê-lo.

Saudade é silêncio, frio, mudança e solidão. É ausência de som, de calor, de companhia; é um monte de coisa que já não é mais. Não é como qualquer outro sentimento, que vai cavando um lugarzinho, se aloja no seu coração e fica até quando quiser. Não, a saudade é o contrário. É um não-sentir. É um buraco que surge, assim, sem mais nem menos, e vai ficando. E o que dói não é o que se faz presente com o tempo, e sim o que se torna ausente.

Por isso eu digo que não sei sentir saudade. Porque saudade a gente não sente: a gente deixa de sentir.