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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Noites Insones II

A noite nunca foi tão silenciosa. Alguns carros de motores barulhentos passam na avenida esporadicamente, os aparelhos ligados nas tomadas fazem um zumbido ensurdecedor e vez ou outra o gato (do vizinho?) mia para a noite. Mas, em essência, a noite é silenciosa.

E isso porque em minha cabeça reina o silêncio. Lá dentro não há anda além de um breu absoluto e o silêncio que ecoa. A santa paz, talvez? Não. Ainda não há paz. Porque o silêncio e o breu roubam tudo o que poderia haver.

Trazem consigo, porém, uma coisa: agonia. Agonia que me pressiona e comprime, que aperta o meu peito até que eu não possa respirar. Eu luto por ar, mas nunca parecer haver bastante espaço para mim, e o vazio e o nada apertam-se em meu peito. Roubam meu espaço, pressionam-me mais. E eu não tenho a quem recorrer.

A pressão da agonia e do vazio é tanta, e o espaço é tão pouco, que me sinto imobilizada. E então rolo e rolo na cama para impedir que isso se consolide. Reviro-me inteira, em desespero de afastar a agonia que me toma. Meu estômago dói, e desejo que assim seja até de manhã. Uma desculpa para não me levantar da cama; para concentrar todas as minhas forças em eliminar minha agonia, e não apenas ignorá-la.

Talvez fosse melhor me levantar, me mover e vencer o sentimento de estar imobilizada. Talvez a agonia só possa ser eliminada por inanição, e ignorá-la e esquecê-la nos desdobramentos da vida seja o único jeito. Afinal, de onde vem essa agonia: Dessa sensação de morte em vida.

"A cada hora que passa envelhecemos dez semanas": Renato tinha razão. Estou envelhecendo a um ritmo angustiante de tão rápido. E, nesse contexto, por envelhecer quero dizer que definho.

18/10/2011

domingo, 6 de novembro de 2011

Noites Insones I

E o que é que eu faço com essa inquietude? Com esses sentimentos que me reviram e desviram em cima do colchão? A noite nunca foi tão barulhenta; carros na avenida vinte e quatro metros abaixo de mim; a tosse no quarto do lado, os saltos da vizinha no andar de cima que acaba de chegar. Apitos e mais apitos; da geladeira, da lava-louças, do celular da minha irmã no quarto ao lado. Os ruídos são tantos que cessam, mas continuam. E continuam porque minha cabeça os forja para preencher o silêncio.

Mas que silêncio, se os meus pensamentos não me dão paz? Se mesmo depois de terminar seu longo monólogo, minha mente não sossega e o reinicia. E eu volto ao estado inicial, que me traz mais horas passadas em constante movimento inquieto. Dessa vez me roubaram uma hora, assim, na cara dura (esse maldito horário de verão!); ou seja: o domingo será um desastre ainda maior do que o esperado.
 
Preciso dormir. Sinto isso em cada parte do meu corpo e em especial em minhas pálpebras pesadas. Mas quem disse que consigo? Esses pensamentos saídos nem Deus sabe de onde não me deixam. E ah! São tantos barulhos lá fora! Tantos que quero colocar isolamento acústico nas janelas e na porta, ou comprar um par de abafadores para mim. Mas em nada adiantaria. Silêncio em meus ouvidos apenas aumentaria o falatório infindável em minha mente, sobre o qual eu não tenho controle. E ele continua, trazendo lembranças, questionamentos, remorsos... Tudo o que, combinado, resulta numa inquietação de proporções monumentais.
 
Os Heróis da Resistência uma vez cantaram: "depois de muito tempo eu durmo em paz, que eu já não tenho tanto pra esquecer." Ah, como aguardo o dia em que a minha voz poderá entoar essa canção e eu poderei fazer coro a tais versos!

17/10/2010

sábado, 22 de outubro de 2011

Deveria bastar?

- Oi, oi, espera!

Ela se virou, levemente curiosa, mas nada mais. O garoto estava respirando um pouco descompassadamente e olhava para ela com intensidade. Ela sentiu um impulso de afastar o rosto e erguer a sobrancelha, e lutou contra ele. O coitado do garoto não lhe fizera nada.

- Pois não? – não conseguiu evitar que a voz saísse irônica. Já era hábito.

O garoto pareceu não notar a ironia, ou ignorá-la. Estendeu a mão. Segurava um quadradinho amarelo.

- Eu queria que você ficasse com isso.

Ela olhou para baixo para examinar o quadradinho. Não demorou a reconhecê-lo como um cartucho de Game Boy Color – Pokémon Yellow. Seu estômago afundou quando a imagem que corria pela internet lhe veio à mente – um print screen de um grupo de 6 pokémons chamados "Você", "quer", "sair", "comigo", "?". Ela achara a ideia linda quando vira a foto, mas agora entrava em pânico enquanto encarava o pequeno quadrado amarelo.

- Não. Não, não, não, não, não! – sem olhar no rosto do garoto, saiu correndo apressada por entre os corredores da vídeo-locadora, sua voz ficando mais esganiçada cada vez que ela repetia a palavra.

Ele a alcançou assim que ela saiu para a rua.

- Por que não?!

- Você nem me conhece! – ela se virou para trás, dessa vez olhando no rosto do garoto para que ele entendesse que ela falava sério. Ele estava exasperadamente calmo.

- Eu sei. Mas eu falei com uma...

Antes de ele terminar de falar, ele sabia que ela havia falado com uma vidente, e que a adivinha os tinha apontado como almas gêmeas. E, de alguma forma, ela sabia que era verdade.

Seu coração se apertou, em negação. Não queria aquilo, nada daquilo. Não queria uma alma gêmea, não queria estar ligada àquele garoto que sequer conhecia. Mas ele não fizera nada para ela – mas ela não queria, não o conhecia e não queria conhecer.

Era ele na porta de seu prédio, ela sabia. O porteiro dissera ao interfone "um garoto com uma cesta enorme". Só podia ser ele. Ela desceu, a contragosto, apenas pela noção de responsabilidade, com o coração mais apertado a cada andar que o elevador descia.

Era ele.

Seu porteiro a desencorajou. Ela mal ouviu suas palavras. Atravessou o hall decidida, apesar da dor no coração, e saiu para a rua.

Ele tinha um sorriso enorme no rosto e estendeu a cesta.

- Pra você.

- Não quero.

O rosto dele nunca se abalava, não importava o quanto ela negasse. Ela se virou para não ter que encarar seu sorriso e começou a entrar no prédio.

Ele a chamou pelo nome.

Como ele sabia?

Ele não explicou. Convidou-a para um passeio. Seu porteiro a desencorajou de novo. Ela ignorou de novo. Concordou com o passeio, contanto que ele desistisse da cesta. Ele a pousou na calçada. Os dois começaram a caminhar; primeiro em silêncio, aquele silêncio inquieto de quem tem muito a dizer, aquele silêncio pesado de quem tem muito a ouvir.

Ela sentia que ele esperava pelas suas palavras, mas não conseguia falar nada. Seu coração apertado batia em sua garganta, roubando-lhe a voz. Olhou para ele, pedindo ajuda, e ele sorriu, sabendo que um dos muros que ela havia construído entre eles havia caído.

Em pouco tempo (pouco? O sol discordava) estavam de volta à porta do prédio. A cesta ainda estava no mesmo lugar. O porteiro já tinha ido embora.

Ele olhou para ela. Seu coração doía mais do que nunca. Sentia-o comprimido, pressionado pela intensidade do olhar do garoto à sua frente. Desviou os próprios olhos, encarou o chão, e sentiu-o se afastar. Ergueu os olhos de novo para vê-lo atravessando a rua, indo embora.

O nome escapou-lhe aos lábios antes que ela soubesse como o sabia.

Ele parou ali, no meio da rua, e olhou para trás. Pela primeira vez, seu rosto estava abalado.

Ela foi até ele quase correndo. A intensidade no olhar dele se fora e isso a enchera de urgência.

Ela engoliu forte para devolver o coração ao peito e reuniu coragem.

- Não daria certo. – falou num fôlego só. Ele se aproximou um passo e ela repetiu seu nome, como advertência. – Não pode dar certo, porque...

Por quê? Eles terminaram de atravessar a rua em silêncio enquanto ela lutava em sua mente para responder a essa questão. Por quê? Antes era porque não o conhecia. Mas acabara conhecendo-o, não fora? E tinha gostado de conhecê-lo. Ele a divertira e a fizera rir, ele não desistira dela quando ela mandara que o fizesse, e ele claramente a amava.

Ela gostara do pequeno passeio, e havia uma cumplicidade inegável entre os dois. Mas ambos diferiam em alguma coisa, em algum ponto crucial. Ele abraçara o que acreditava ser o destino dos dois. Ela repudiava aquela ideia, contestara-a desde o princípio.

Ela procurou-o com o olhar, talvez apenas para encará-lo, talvez para falar tudo o que sentia. Mas não o achou. De repente a rua estava cheia de gente, lotada, e uma música estourava caixas de som. Ela procurou-o na multidão sem saber por quê. Sentia que as pessoas a empurravam em direções opostas, como ondas num mar revolto.

Não era só o coração que ela sentia apertado, agora. Tentou sair da multidão, queria chegar em casa e esquecer aquele dia tão prazerosamente horrível. Abriu caminho na multidão como se nadasse, sem nunca conseguir alcançar a margem. Todos queriam cumprimentá-la, apertar sua mão, apoiar sua escolha, parabenizá-la, criticá-la, dizer que era tola, que aquilo deveria ter bastado.

Ela fechou os olhos com força e gritou, gritou que queria sair dali, que não queria nada daquilo, que não queria jogo nenhum, cesta nenhuma. Ouviu a voz de seus pais dizendo que fora a síndica que mandara, que não podia ficar jogada em qualquer canto do prédio.

Ela abriu os olhos. Tinha conseguido chegar em casa; estava em seu apartamento de frente para seus pais. A cesta estava entre eles.

- Não era pra trazer isso pra cá! – gritou, esganiçada. Seus pais se justificaram de novo – a síndica mandou, a síndica quis. Sem dizer palavra, agarrou a cesta pela alça e saiu de casa, tomou o elevador e apertou o 12. O elevador parou no 9; ela apertou o botão de novo, mas a luz sequer se acendeu.

Ela socou o botão, exasperada, mas o elevador zombava dela, não obedecia. Apertou o 8, ele foi para o 3; apertou a garagem, ele foi para o 12. A porta não abriu.

Ela gritou, em desespero, a dor sempre-presente no coração sufocando-a; minando suas forças, deixando-a encolhida e frágil no chão do elevador.

Acordou do sonho como quem acha a superfície depois de se afogar. Não sabia onde estava, sua respiração estava descompassada, seus olhos, muito abertos, e ela ouvia o pulsar de seu coração em seus ouvidos.

Levantou-se. A blusa colava no seu corpo suado. Um raio de luz entrava pelas cortinas entreabertas. Ela foi até a janela. Estava escurecendo.

O que tinha sido aquilo? O sonho se esvanecia com a rapidez com que o sol se punha. Ela tentou reter as lembranças, mas já estava escuro antes de ela conseguir reconstruir a história. Rendeu-se. Foi até o banheiro e fitou sua imagem no espelho. Um único pensamento passou pela sua cabeça: deveria bastar?

Seu coração se apertou.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Por não ser um ser bruto

Ela lutou contra a vontade de chorar até estar debaixo da ducha do chuveiro. Assim que a água quente escorreu pelo seu corpo nu, e ela sentiu o arrepio do choque térmico, as lágrimas, como se seguissem o exemplo, escorreram pelo rosto contorcido, desnudado e sincero em sua dor.

Sentia-se fraca, como havia muito não se sentia. Os joelhos tremiam, a respiração fraquejava e os ombros balançavam com os soluços incontidos. Era curioso como ela mantinha tudo aquilo no peito durante semanas, se fosse preciso, e não conseguia conter um único soluço que fosse quando estava naquele refúgio.

Riu-se, em meio ao choro, da ironia da coisa. Ali, abraçando a si mesma, encolhida debaixo da água como um animal acuado, era onde se sentia mais protegida e segura. Totalmente exposta e, portanto, vulnerável ao máximo, era apenas ali que ela se sentia confortável o bastante para deixar suas defesas caírem, como as roupas caídas no chão do banheiro, e se revelar por inteiro.

Não. Não era só ali. Ela ouviu o eco da sua risada, rouco e estrangeiro, nas paredes do banheiro enquanto um novo soluço sacudia-lhe o corpo. Havia um único lugar - lugar? - em que ela sentia aquele conforto que a levava a chorar, mas ela jamais voltaria a avistá-lo. Ele estava fora de alcance agora, sempre.

Desejou poder encontrá-lo. Desejou com todas as forças, refez o caminho mentalmente, mas era inútil e ela sabia. Deixou a cabeça tombar para trás e a água quente molhar seus cabelos. A sensação era boa, era completa. De olhos fechados, ela massageou os ombros para desfazer os nós e tentou não pensar.

Quando os soluços pararam e seus joelhos se firmaram, ela, com uma respiração longa, lenta e profunda, desligou o chuveiro, passou a mão na toalha e envolveu seu corpo, saindo do box. Instantaneamente, suas lágrimas cessaram. Com o vapor quente escapando depressa pela janela aberta, o banheiro estava enregelante. Ela sentiu os joelhos fraquejarem e quis se sentar.

- Você pode fazer isso sozinha. - encorajou a si mesma. - Você já sabe todas as palavras de cor, mesmo.

Dando um passo para fora do tapete, pisando no chão frio, ela se postou em frente ao espelho e, por uma fração de segundo, encarou seus olhos - tão seus, tão conhecidos e, subitamente, tão diferentes. No fundo daquelas pupilas verdes que conhecia já havia anos havia algo novo; um caminho desconhecido, a janela para uma outra alma estranhamente familiar. 

Sentiu as lágrimas equilibrarem-se perigosamente em suas pálpebras ao re-conhecer-se no espelho. Seu coração inflou-se de repente, apertando seu peito por dentro de uma maneira calorosa, para poder acomodar melhor o que sentia. 

De fato, ela podia lidar com aquilo sozinha. E a melhor prova era que ela mesma havia se convencido daquilo. Mirou-se novamente no espelho , tentando aprender e apreender cada detalhe do rosto - seu rosto! - que a encarava, as rugas na testa, o queixo erguido, a forma como os lábios se franziam.

Encarou seus olhos mais uma vez. Ainda eram seus, tão seus quanto sempre foram, mas ela encontrou de novo aquele algo mais, o caminho para aquele lugar que, de tanto procurar, acabara guardando dentro de si mesma. Sorriu e recitou para si mesma o velho provérbio chinês - eu ouço e esqueço, eu vejo e me lembro, eu faço e aprendo - que nunca entendera e nunca fora tão verdadeiro quanto naquele momento.

Com passos firmes, ela saiu do banheiro, percebendo pela primeira vez como aquela toalha era curta.

(26/07/2011)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Para os muitos Yoshis por aí

Te vi andando na rua outro dia, mas você não me viu. Eu estava de um lado da calçada e você do outro, acho que foi por isso. E você estava no celular, também, discutindo alguma coisa importante. Eu acho que era importante, pelo menos, porque você estava com aquela ruga entre as sobrancelhas que só aparece quando você está falando de algo importante. Pensei em acenar pra você, mas achei melhor não. Você não ia ver. E você estava no celular.

Fiquei feliz de te ver. Você está mudado. Cortou o cabelo e desistiu daquele bigode que, desculpa a sinceridade, estava meio ridículo. Gostei mais assim. Acho. Achei que gostaria. Achei estranho te ver com aquele uniforme também. Meio surreal, meio imaginário. Não estava esperando te ver tão grande.

Queria que você não estivesse no celular. Queria que você tivesse me visto, agora que eu estava até bem arrumadinha, voltando da faculdade. Lembra da última vez em que a gente se viu? Foi lá em casa, um tempo atrás. Você veio visitar meus pais – claro que não vinha me visitar -, falar que vocês iam ser colegas de profissão, pedir dicas e esse tipo de coisa. Foi logo depois de sair o resultado do seu vestibular. Do segundo. Veio sozinho, sem o seu pai, apesar de que tinha anos que os meus pais não te viam. E que a gente não se via.

Não sei se você lembra, mas eu fiquei discretamente com os braços na frente do corpo o tempo inteiro. É que eu estava usando uma camiseta do Paramore e não sabia o que você achava da banda. Não queria que você me achasse ridícula. Não muito, pelo menos. Acho que ridícula você já me achava desde o dia em que eu briguei com você e comecei a chorar sem te dar a menor explicação. Eu tinha doze anos na época e era a maior chorona, mas você era paciente.

No dia que você foi lá em casa você já estava distante. Eu te dei um abraço pra te dar os parabéns por ter passado e foi rápido, mas eu percebi que você tinha um cheiro. Uma mistura de sabonete, loção pós-barba e jogo de Super Nintendo. Tudo bem, talvez eu tenha imaginado o cheiro do jogo de Super Nintendo. Você sabe de qual cheiro eu estou falando, não é? Aquele típico, de quando a gente tirava os cartuchos da caixa quando você ia lá em casa. Até hoje eu não sei de onde ele vinha, pra mim é cheiro de jogo de Super Nintendo e ponto.

Ainda tenho os cartuchos. E eles estão exatamente no ponto em que você deixou. Nunca fui muito boa com videogames, apesar de adorar. Acho que era por isso que eu te chamava tanto pra jogar comigo. Eu precisava de alguém pra destravar as fases pra mim, pelo menos no começo. Depois eu comecei a te chamar porque era divertido. E você começou a vir sem ser chamado.

Você era meu melhor amigo e eu te admirava. Você era legal, era inteligente, era mais velho, sabia muito de videogames. Você era, de certa forma, tudo o que eu queria ser. E você tinha paciência comigo, com a minha adoração irrefreável, com as crises de choro de uma criança de sete anos e, mais tarde, com as bipolaridades de uma garota começando a entrar na adolescência com uma queda monumental pelo melhor amigo. Você agüentava meus ataques gratuitos, meus surtos de ciúmes infundados, minha fria indiferença quando eu cismava que, por você não ver que eu estava apaixonada por você, eu tinha o direito de descontar minha frustração em cima de você.

Mas você via. É claro que via! Via e, pensando no meu bem, fingia que não via pra não ter que me pedir pra parar com aquilo e criar algo estranho entre nós. Você sempre foi gentil comigo, meu amigo até o final. E é justamente por isso que eu me esforcei para não te perdoar por ter desaparecido. Não vi quando foi, só quando já tinha sido. Percebi porque minha mãe, fazendo limpeza nos armários, encontrou meu Super Nintendo, que a gente já tinha abandonado muito antes de se abandonar, mas que eu continuava associando a você. E de repente a sua ausência se fez presente, e muito.

E eu fiquei tão frustrada, e magoada, e ressentida por você simplesmente ter ido embora, que fiz um monte de besteira, uma atrás da outra. E a situação foi se complicando e eu fui me encaminhando para os piores meses da minha vida. E tive que passar por eles sozinha, porque você tinha desaparecido. Mas eu aprendi a viver com a sua ausência. Sua memória passou a me bastar e, depois daqueles meses infernais, os anos que se seguiram foram tempos de calmaria. Mudei; cresci; enquanto você, em algum lugar da cidade, fazia o mesmo, separado de mim. Mas eu cresci com um você, um você Frankstein que eu havia criado costurando remendos de lembranças que eu tinha de você.

No dia que você foi lá em casa, eu fiquei na sala todo o tempo em que você esteve lá. Não reparei que o você que estava ali, de carne e osso, já era diferente do você que eu havia criado para suportar sua ausência. Eu conversei com você como conversava às vezes com a minha memória, e disse a mim mesma que não percebia que suas respostas eram diferentes das que eu costumava responder por você em minha imaginação. Eu deixei você tomar a última Coca da geladeira e desliguei o meu computador antes de sair do quarto. Eu devia realmente gostar muito de você.

Te vi andando na rua outro dia, e de repente comecei a pensar nisso tudo. E, à medida que pensava, minha vontade de te chamar foi ficando cada vez menor. Você nunca quis terminar aqueles jogos, nem pensou que talvez eu precisasse de ajuda para terminá-los. Você não me chamou nenhuma vez, em todos aqueles anos. Quantas vezes aquela mesma situação já podia ter se repetido ao contrário, você no meu lado da calçada e eu resolvendo algum problema importante? Aposto que você me viu passando na rua um monte de vezes, com o meu celular grudado na orelha ou os meus fones afundados no ouvido, e nunca me chamou.

Então eu disse pra mim mesma que você não me viu porque estava no celular, e continuei andando. Descobri que gosto mais do seu bigode porque, quando você foi lá em casa, eu substituí o você de quinze anos que eu tinha visto pela última vez pelo você de dezenove com bigode, e não quero ter que atualizar a imagem de novo.

Não quero substituir mais nada. Não quero aceitar racionalmente que não precisava ter ficado preocupada com a minha camiseta, porque você não a veria – você mal me viu, mas eu não quero aceitar isso. Não quero conhecer esse novo você, porque sei que vai ser uma pessoa muito diferente do você que eu conheço e – sim, ainda – amo. Talvez isso seja um pouco autodestrutivo, ficar insistindo nesse sentimento tão Platônico que o próprio Platão não entenderia: amo alguém que não existe mais, talvez nem tenha existido! Nada pode ser mais autodestrutivo que isso.

Mas eu preciso disso. Eu preciso dessa pequena fantasia pra me ajudar a levar os dias muito secos, assim como quando eu criei esse você fantasma para me ajudar a superar aqueles meses ruins. Até eu encontrar uma maneira melhor, algo real, esse meu pequeno lapso de insanidade é o que me impede de mergulhar de vez na loucura. Enquanto eu não confundir o meu você com o seu você, eu não tenho com o que me preocupar.
E naquele outro dia, porque eu observava as suas costas se afastarem pela rua cheia, o celular ainda grudado na orelha, meu coração ficou subitamente mais leve.


Esse texto, bastante para o meu desapontamento, é quase todo ficcional. Apesar de algumas coisas terem sido extraídas de fatos verídicos (por exemplo: eu era uma chorona com 12 anos, eu de fato tenho uma camisa do Paramore e eu guardo meu Super Nintendo com carinho e amor até hoje), a maior parte dele é apenas uma maneira de "me ajudar a levar os dias muito secos". Eu não tenho nenhum melhor amigo de infância pelo qual fui apaixonada (apesar de que tive um amigo quando era pequena que sempre me ajudava a passar as fases no Super Nintendo – aliás, Gabriel, se um dia você ler isso, não se preocupe, hein? Pura ficção), não encontrei nenhum conhecido na rua recentemente, e não tô nem aí se não gostam da minha camisa do Paramore.

domingo, 11 de setembro de 2011

Qual é o ponto?

A única coisa que percebo, a princípio, é o barulho engraçado das solas dos meus All Stars gastos contra o chão – tap, tap, tap, tap. Meus pés escolhem esses caminhos sem me perguntar. E esse ritmo também, na verdade. Eles sentem a urgência antes que eu mesma tenha tido tempo de processá-la. Eles correm e não ligam se eu tenho dificuldade para acompanhar, desde que acompanhe.

Geralmente eu perco a conta de quantas vezes foi por um triz. De quantas vezes desviei na última hora porque me precipitei, ou de quantas vezes aquele momento de hesitação teve que ser compensado com mais urgência do que meus pés já tinham assumido. Esses pequenos momentos de risco, de quase, sempre me fazem questionar se o resultado compensa isso tudo.

Minhas pernas sempre reclamam. Minha barriga também. Inevitavelmente eu respiro pela boca – gente com os sinos nasais afetados precisando de mais oxigênio vai invariavelmente apelar pra esse recurso – e aquela dorzinha na lateral da barriga sempre vem me fazer companhia, dando um alô a cada inspiração.

Isso sem falar na figura ridícula que eu faço. Aquela mochila enorme e pesada balançando às costas, me fazendo desengonçada e me atrasando. A calça caindo, quase sempre, me deixando praticamente nua – talvez nem tanto, tudo bem, mas a sensação é de total exposição -, e o único jeito que tenho de evitar isso é aumentando o ridículo da minha situação e correndo enquanto seguro a calça.

Aí aparece aquele buraco ordinário – aquele, que sempre aparece enquanto a gente corre e tudo a nosso redor é um mero borrão – e eu afundo meu pé com tudo. Estico os braços como um pássaro para tentar recuperar o equilíbrio, mandando a calça – e tudo o mais - às favas. E aquele momento em que meu coração resolve parar, em que meu corpo fica suspenso no ar, aquele é um momento em que dá pra achar um pouco de paz. Enquanto meu corpo cai – lá vem o clichê – em câmera lenta e descreve um arco, tão gracioso quanto possível com uma mochilona nas costas, no ar, eu sei que não há nada que eu possa fazer a respeito disso. Deixo para a inércia e para a gravidade a tarefa tão urgente de me impulsionar adiante e aproveito a sensação de quase vôo, de liberdade. De paz.

Mas cedo demais meus pés tocam o chão de novo – as solas dos tênis fazendo taps particularmente altos – e meus pés retomam o controle, correndo com ainda mais urgência, a despeito da dor insistente na minha barriga, da queimação no meu nariz por causa do ar seco demais, das reclamações das minhas pernas de que já basta de correr, da mochila balançando pra cá e pra lá nas costas, da calça caindo, da dor do tornozelo machucado pelo buraco ordinário. Apesar de desejar com todas as forças voltar para aquela sensação libertadora, ou pelo menos parar de correr, apesar de odiar tudo o que se relaciona àquela atividade dolorosa para o meu corpo e minha moral, apesar de mal me lembrar de quando e por que eu comecei com aquilo, eu continuo correndo, guiada pelos meus pés, que, naquele momento, sabem mais do que eu.

Quando finalmente chego no meu ponto, não há sensação de alegria, nem de vitória, nem de ter conseguido vencer uma etapa. Só o alívio de ter parado, o consolo barato de saber que fiz apenas o necessário para ter um pouco de conforto que não era assim tão necessário, uma necessidade louca de descansar e a pergunta ainda mais ordinária que aquele buraco: será que valeu a pena?

Às vezes tenho a impressão de que estou constantemente correndo pra pegar ônibus, e eu não podia muito bem ir andando?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Ferozes feridas

Pele queimada de sol se retrai ao menor toque
A vermelhidão denuncia a dor
E dor-mir é tormento, impossível.

Pele queimada de sol é frágil e fraca
A mesmo o menor movimento sofre,
Sofre por ter-se tornado sensível.

O mundo, se frio, também queima
Mas momentâneo, apenas, só o contato
Aquecendo-se, pronto, a dor passa

Isto posto, que é que se entende?
É o meio que, feroz, todos destrói,
Ou o corpo que, ferido, se rende?

(19/04)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Domingo agostiniano

Disfarçadamente, ele saiu da sala, esgueirando-se pela porta de trás. Os habitantes da casa estavam muito ocupados terminando de carregar as bagagens para o carro, ou com os olhos fixos, compenetrados, na tela da televisão, que exibia a lamentável programação de um domingo à tarde. Não notaram sua discreta saída, e ele não teria se importado se tivessem, mas preferia assim. Saiu sozinho para o quintal e, tendo apenas ele mesmo por companhia, se sentou na quadra de cimento com as costas na parede, bem debaixo da janela do seu quarto.

Quanto tempo de sua vida ele havia passado ali? Muito, sem dúvida. Passou os olhos pelo quintal, assistindo a uma criança invisível correndo de uma ponta a outra. Ele praticamente ouviu a voz esganiçada de um garoto de dez anos gritando “pokebola, vai!”, e atirou o braço para frente, distraído, como se de fato atirasse uma pokebola. Riu sozinho quando notou seu braço estendido sobre seu joelho e se perguntou o que teria acontecido com o boné que costumava estar sempre plantado em sua cabeça.

A julgar pela forma como o sol iluminava as árvores ao redor (pois era um quintal bem grande), era pouco mais de quatro horas. Ele não sabia dizer as horas com base no sol, apesar de ter tentado aprender, mas aquele horário e aquela luz eram reconhecíveis para ele. Era um horário (e não havia melhor palavra para descrever) vibrante. Todas as cores se realçavam, em especial o amarelo no céu, e ele sentia que o mundo vibrava e que ele vibrava com o mundo.

Ele ficou ali sentado, tendo a si mesmo por companhia, costas contra a parede, braços sobre os joelhos, vibrando em sintonia com o ambiente. Era o seu horário favorito do dia, quando mais se sentia parte inseparável do mundo. Havia tempo que ele não se sentia assim. Tanta coisa mudara desde que ele atirara sua última pokebola, desde que seu boné se perdera, desde que o galho de árvore que ele escolhera com tanto carinho tinha se partido e ele, com lágrimas escorrendo pelo rosto, jogara os pedaços no fogão a lenha e os observara queimarem.

Mais uma vez rindo de si mesmo, ele levou a mão até a testa, como se esperasse encontrar ali a cicatriz em forma de raio que tantas vezes desenhara com canetinha marrom. Quando a tinha desenhado pela última vez? Ele não tinha a menor ideia, assim como não sabia como havia sido a transição entre o boné e a cicatriz, a pokebola e a varinha. Franziu as sobrancelhas; a mão ainda na testa, o cotovelo apoiado no joelho e as costas curvadas. Sentiu um aperto no peito que nada tinha a ver com a posição em que se sentava.

Não devia ter ido até ali. Devia ter previsto aquilo quando saiu para o quintal: aquele horário, aquela luz fria e brilhante sempre o deixava se sentido solene. Ergueu o rosto e olhou ao redor repreensivamente, como se fosse culpa do quintal que ele se sentisse assim. Estava tudo exatamente igual. Talvez um árvore maior do que costumava ser, um pouco mais de mato aqui e ali, mas era indiscutivelmente o mesmo quintal E então ele desfranziu a sobrancelha e se deixou contaminar de novo pela vibração que só ele sentia. A sensação era revigorante e incomparável. Ele voltou a se sentar como antes, com as costas apoiadas contra a parede. O aperto em seu peito diminuiu; talvez tivesse algo a ver com a sua posição, afinal.

Quanto mais ele olhava ao redor, menos seu peito doía e mais livremente ele conseguia respirar, apesar de sua respiração nunca ter sido difícil. Ele voltou a pensar no garotinho com a cicatriz desenhada e o graveto no bolso; o boné enterrado na cabeça, uma mão curvada como se segurasse alguma coisa redonda e a outra mão segurando firmemente um boneco de pelúcia amarela. Ele o via ali, em pé no meio do quintal, recortado contra aquele mesmo cenário, e dessa vez não se sentia solene, nem comprimido entre duas paredes muito próximas, mas livre como não se sentia em muito tempo.

Tempo. Era justamente aquilo que o comprimia, o tempo. O tempo que parecia ter sido muito, infinito, incontável. O tempo que agora parecia ser insuficiente e o sufocava, como se fosse também espaço insuficiente. Ele se sentia perdido no meio de um turbilhão, sem saber como se achar, sem saber onde eram o caminho de que viera, o que devia seguir e o que de fato estava seguindo. E não sabia como descansar, como parar aquele furacão que carregava consigo dentro do peito e que o apertava (como agora percebia) não de fora pra dentro, mas de dentro pra fora.

E repentinamente a resposta estava ali; sempre estivera ali e justamente por isso era a resposta. Ele teve vontade de rir enquanto olhava para o cenário idêntico às suas lembranças, que começava a perder aquela tonalidade vibrante à medida que o sol afundava mais e mais no horizonte. Ele aproveitou os últimos minutos para acalmar o pulsar acelerado de seu coração e se levantou quando o brilho havia se extinguido por complexo, ainda olhando ao redor. Agora tudo parecia estranhamente incolor e opaco; o por do sol só seria dali a algumas horas, mas ele já sentia como se estivesse escurecendo.

Tempo é mudança, a frase passou pela sua cabeça enquanto ele entrava na sala de novo. Ele olhou por cima do ombro rapidamente, como se esperasse ver o menininho de dez anos correndo, talvez caindo e ralando os joelhos no cimento, e sorriu, sabendo que ali, naquele quintal imutável, ele havia encontrado um refúgio onde podia descansar.

terça-feira, 26 de julho de 2011

A mulher nua

Um dia, quando tinha 12 anos, eu entrei em casa e encontrei meu pai lendo na sala. Ele era escritor e, com frequência, recebia pedidos de amigos, conhecidos, conhecidos de amigos, para que lesse manuscritos e passasse-os para seu editor se gostasse. Geralmente, antes de passar para o editor, ele passava para mim, um amante de literatura em formação.

Naquele dia, perguntei-lhe sobre o livro; de quem era, se ele estava gostando. Era de uma amiga da filha de uma velha senhora, nossa vizinha, e, de acordo com o meu pai, era um primor de livro. Naturalmente, pedi-lhe que deixasse no meu quarto quando terminasse, mas, ineditamente, meu pai negou. Surpreso, indaguei sobre a razão.

- Esse livro contém uma mulher nua. Você ainda é muito jovem para ver esse tipo de coisa.

Eu era um amante da literatura em formação, mas, entendam, eu era antes um homem em formação. É claro que fiquei louco de vontade de dar uma espiada. Que tipo de detalhes poderia haver ali? Que tipo de descrição tão completa de algo que era para mim tão desconhecido poderia aquele livro fornecer, tão exata que fizesse com que meu pai nunca deixasse o manuscrito ao alcance das minhas mãos?

Aquilo encheu minha imaginação por dias. Na escola, na rua, deitado em minha cama, eu me pegava murmurando frases e construções, uma atrás da outra, tentando adivinhar o que a autora poderia dizer.

Um dia, cerca de uma semana depois, trombei com o manuscrito por acaso. Estava procurando qualquer coisa no armário do meu pai e acabei encontrando-o - era um sinal do destino para que eu o lesse. Ávido de curiosidade, com aquele medo terrível de ser pego que torna tudo melhor, fechei-me em meu quarto e li. E li. E li, páginas e mais páginas, capítulos e mais capítulos, um infindável monólogo sobre uma mulher e os homens que já haviam partido seu coração, ou os erros que ela própria havia cometido e a atormentavam todos os dias.

Parei de ler pouco depois da metade. Já havia desistido da minha mulher nua, mas, principalmente, alguma coisa na forma como a amiga da filha da minha vizinha explicava seus sentimentos mexera comigo. Eu não sabia que se podia sentir tanta coisa ao mesmo tempo, ou por tantas razões, ou de maneiras tão conflitantes.

Um pouco abalado, um pouco frustrado, guardei o manuscrito de volta onde tinha achado, mas meu pai sabia que eu tinha lido. Disse que estava estampado em meu rosto e me repreendeu pela desobediência.

- Mas não tinha nenhuma mulher nua lá! - me defendi, me lembrando das páginas infindáveis do interminável monólogo.

Meu pai desfez sua expressão séria e repreensiva, e abriu um sorriso de quem sabe alguma coisa a mais. Imaginei que ele fosse me dizer qual era a página, ou que ela estava escondida por um código secreto, mas sua única resposta me deixou ainda mais intrigado:

- Eu disse que você é muito novo para ver esse tipo de coisa, não disse?

domingo, 3 de julho de 2011

Como é que se sente saudade?

Não sei muito bem como é que se sente saudade. Saudade pura, só ela, totalmente alojada na minha "magnânima bomba aórtica": não faço a menor ideia de o que é isso. Pra mim não é um sentimento inteiro que se sente num só lugar. Quer dizer, como a gente sabe sequer que está com saudade?

Saudade é silêncio. É o celular que já não toca mais, a conversa dos amigos à qual a gente não consegue mais prestar atenção. É a casa vazia sem o eco das risadas e sem o som do CD preferido, porque traz lembranças demais. É o piano calado, porque não se tem quem toque ou nos anime a tocar. É a falta até dos murmúrios pra gente mesmo, porque não se tem muito o que falar.

Saudade é frio. É a falta do abraço confortável, do casaco emprestado quando esquecemos o nosso. A falta de quem nos cubra durante a noite porque caímos no sono antes de fazer isso nós mesmos, ou de quem nos acompanhe numa taça de vinho durante o jantar. É a falta das palavras carinhosas que nos aquecem por dentro e das confissões embaraçosas que fazem nossos rostos queimarem.

Saudade é um monte de mudança. As fotos que são substituídas, ou que são tudo o que restou. A pessoa que não vai chegar em casa no horário que costumava chegar. Os sábados passados em casa. A cadeira vazia na mesa de jantar. Os objetos pessoais em caixas, não mais no armário.

Saudade é solidão. É estar rodeado de amigos e não saber exatamente quais, se alguém perguntar. É olhar para todos os rostos e buscar apenas um. E nunca mais vê-lo.

Saudade é silêncio, frio, mudança e solidão. É ausência de som, de calor, de companhia; é um monte de coisa que já não é mais. Não é como qualquer outro sentimento, que vai cavando um lugarzinho, se aloja no seu coração e fica até quando quiser. Não, a saudade é o contrário. É um não-sentir. É um buraco que surge, assim, sem mais nem menos, e vai ficando. E o que dói não é o que se faz presente com o tempo, e sim o que se torna ausente.

Por isso eu digo que não sei sentir saudade. Porque saudade a gente não sente: a gente deixa de sentir.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Não sou mais uma aluna de colegial

Não sou mais uma aluna de colegial, e sabem como eu sei disso? Não é porque vi os vídeos da minha formatura. Nem porque achei um xerox do meu histórico escolar na gaveta, e tampouco porque estou frequentando a faculdade. Não, o verdadeiro motivo nada tem a ver com minha vida acadêmica.

Acontece que eu conheci um cara. É, a história sempre começa assim. Garota conhece garoto, garota se apaixona por garoto, garoto parte o coração de garota. Só que dessa vez não foi bem assim. Eu conheci um cara – fim da história. E é por isso que eu sei que não sou mais uma colegial. Sim, explico.

Já ouviram a expressão "amor de colegial"? Na verdade, não sei se é uma expressão popular, mas, pra mim, é cheia de significado. Amor de colegial, aquele amor puro, inocente, virgem na experiência de amar. Aquele dos olhares derretidos, dos abraços roubados e dos arroubos de sinceridade nos quais sai um "eu te amo" ou um "meu dia não tem graça sem você" que nos fazem corar.

Por que de colegial? Porque, enquanto eu aprendia com a vida o que era amor, ele dava o ar de sua graça principalmente durante o colegial (que já há uns bons anos virou "Ensino Médio"). Então o "amor de colegial" é aquele primeiro amor, do coração que nunca foi partido ou que, se foi, ainda tem forças para bater freneticamente por causa de um simples olhar.

Eu conheci um cara. E passei pela história do "conhece, apaixona, se machuca" tantas vezes que, agora, parece que meu coração simplesmente não liga mais. A impressão que tenho é que o cara que conheci é uma cópia melhorada do meu primeiro amor (o qual, ironicamente, não foi no colegial), mas não adianta que ele me encare ou segure minha mão pelo motivo que seja: meu coração se recusa a bater. Não que o tal cara faça qualquer dessas coisas – ele passa por mim como passa por qualquer outra. E isso, apesar de me incomodar um pouco, não chega a me machucar.

Sei que estou reclamando de barriga cheia. Sei que, de um ponto de vista racional e afastado, isso quer dizer que eu aprendi minha lição e que não vou ter mais que passar pela dor de um coração partido. Mas eu não gosto das coisas desse jeito. Não gosto desse amor racional e controlado que sinto agora, não quero saber desse jeito realista de ver as coisas. Quero a emoção arrebatadora do romantismo e a desregragem (e liberdade de criar minhas próprias palavras) do modernismo. Quero o palpitar acelerado no coração, os sonhos vívidos durante a noite, a alegria efusiva por uma vitória insignificante, a dificuldade de desviar o olhar mesmo estando do outro lado da sala.

Não ligo para a dor do coração partido. Não me importo que o palpitar do coração não me deixe respirar, que os sonhos vívidos me façam derramar lágrimas de manhã por serem apenas sonhos e que as vitórias só sejam vitórias na minha cabeça. Não fico assim tão triste de sofrer - toda forma de sofrimento é válida se virar literatura. E a minha literatura é a minha vida. Logo, toda forma de sofrimento é uma forma de viver.

No fundo, bem no fundo, tenho medo de que meu coração nunca consiga recuperar sua inocência e nunca seja capaz de se entregar por completo a mais ninguém. Mas não sei. Talvez seja o momento (há tanta coisa acontecendo que minha razão resolveu assumir o controle), talvez seja o fato de que meu coração tem batido aos trancos e barrancos nos últimos dias por causa de uns certos ferimentos.

Eu não sou mais uma aluna de colegial. Meu coração já o sabe e, em caso de dúvida, é só procurar meu comprovante de matrícula da faculdade. Sendo assim, jamais terei outro amor de colegial. Mas, ei! A vida acadêmica continua, não é? Pode ser que exista para alguém uma expressão que até então me é desconhecida: amor de faculdade. E pode ser, também, que ele seja ainda melhor.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

(Sim, você está no endereço certo)

Pois é, galera, o site tá certo, só tá diferente. Alterei o background, o cabeçalho e a forma como as postagens são separadas, e essas são só as mudanças evidentes.

Não vou falar de tudo o que mudou pra não tirar a graça da descoberta, mas tenho que mencionar duas coisas. Primeiro: muita gente me falava que não sabia o que comentar e por isso não comentava. Agora temos os "comentários rápidos", pra resolver esse problema =) E segundo, agora você pode se inscrever no blog, ali, bem abaixo dos seguidores.

Essas são as principais mudanças, que eu gostaria de ressaltar. O resto foi por questão de capricho mesmo, hahaha.

Ah, e enquete aqui do lado direito não vai ficar pra sempre. Pretendo tirar no começo do mês, então se vocês quiserem dar um "pitaco" (como têm dito na minha sala de História Social dos Meios, haha), a hora é agora. =)

É isso aí. Voltem sempre, continuem/comecem a comentar e muito obrigada.

sábado, 21 de maio de 2011

Adoecente

(antes que vocês julguem título, ele é metalinguístico)

- Acho que tô ficando doente. – a garota fala com a testa colada no vidro enquanto encara as nuvens negras no céu. Ela é uma estudante universitária; começou o curso há não muito tempo e desde então teve sua vida virada do avesso.

Se mudou, porque a universidade não é na cidade em que morava. Agora não vive com papai e mamãe e toda a roupa suja fica por conta dela. Aprendeu a pegar ônibus, cozinha sem pôr fogo na casa, paga suas próprias contas – ela, que não sabia operar um caixa rápido. Em resumo, cuida de tudo, pensa em tudo.

No presente momento, ela está pensando se vai adoecer ou não. Sabe que algum tempo atrás houve uma epidemia de alguma coisa que esvaziou a sala pela metade por duas semanas. Sabe que a mochila está pesada sobre os ombros, apesar de não estar tão cheia. Sabe também que o vidro da janela está frio contra sua testa e que, mesmo de blusa de frio, ela está tiritando. E isso acaba sendo o bastante para que conclua que, talvez, amanhã seja melhor fica na cama.

Nossa amiga não sabe muitas coisas a respeito de si mesma. Às vezes, bem às vezes, é realmente capaz de dizer se está adoecendo, mas não sabe dizer sequer que tipo de doença é essa. Se ela se conhecesse um pouco melhor saberia que ficar na cama só vai piorar sua situação. Está ficando doente, sim, mas não da epidemia que debilitou seus colegas, nem do frio que traz o resfriado anual. Na verdade, não é bem uma doença: é mais uma síndrome, algo que, de certa forma, a acompanha há um tempo.

Por que, então, ela se sente adoecendo agora? Porque até pouco tempo atrás sua síndrome era remediada, amenizada, pela presença e atuação de seus pais. Agora cabe a ela ministrar a aplicação do remédio, mas ela não sabe como fazer isso – é essa uma das poucas coisas que ainda não aprendeu. E então a síndrome se torna algo que ela não pode mais ignorar, os sintomas a debilitam e a fazem pressionar a testa contra o vidro frio da janela e meditar sobre sua saúde.

A porta do elevador se abre com ruído. Ela sai de seus pensamentos e caminha até ele sem pensar muito, olha para frente e uma pessoa a encara. Uma garota com cara de cansada, olhos quase fechados, mochila nas costas e um moletom.

- Nossa, tenho que parar de ir dormir tarde. – ela fala para seu reflexo, depois suspira pesadamente. Ah, se nossa amiga soubesse tanto de si quanto nós sabemos! Ela seria capaz de reconhecer essa fala e esse suspiro como sintomas da sua patologia, sinais de que a síndrome está ficando mais forte. E ela estaria um pouco mais próxima da cura, porque, afinal, o tratamento não começa sem o diagnóstico.

Queria eu soprar isso tudo ao pé do seu ouvido, mas não posso. E se pudesse, ela não ouviria. Os fones de ouvido estão plantados fundo, enquanto ela se pergunta se deve ou não ficar na cama amanhã.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Almargo

Perguntaram pra @onaina no formspring qual foi o sonho mais louco que ela teve e a resposta dela foi essa de baixo. Gostei e resolvi postar aqui. =)

Eu morava numa casa enorme e branca com meu pai. Um dia, eu estava anotando coisas que ele ditava quando bateram na porta.

Meu pai atendeu e entraram um homem, o filho mais velho dele e duas menininhas e, não sei como eu sabia disso, mas eles eram políticos e estavam fazendo campanha. Eles entraram, eu cumprimentei a todos e o rapaz me perguntou em inglês (eu era fluente no sonho), espantadíssimo, como diabos eu conseguia segurar aquela caneta com a minha mão sem que ela caísse. Eu simplesmente respondi que conseguia segurar segurando, ué. Ele se contentou e eles continuaram a fazer a campanha.

Depois de alguma conversa, meu pai disse a eles que votaria em todos e eles foram embora. Eu, assustada, perguntei ao meu pai quem eram eles e se ele realmente ia votar neles, já que eram uns loucos muito loucos. Então ele riu e disse que, na verdade, eles não eram políticos, só pensavam que eram e estavam mortos. E que tudo aquilo era um ''almargo'' (nunca entendi essa parte).

Eu, obviamente, ri da cara dele e disse que seria impossível que eles estivessem mortos porque não seria qualquer pessoa que poderia ver todos eles e eu, certamente, estava vendo-os todos. Meu pai riu e disse que eu estava certa, não era qualquer um que podia vê-los todos. E era por isso que eu não tinha visto a mãe deles.

Acordei muito assustada e até hoje, quando eu vou dormir, tenho medo de abrir os olhos e ver a mãe deles.

sábado, 7 de maio de 2011

Linha tênue

Desde o começo, desde a primeira vez, eu sabia que isso ia acabar me consumindo, mas achei que fosse ser capaz de controlar. Ah, ilusão. Agora eu não penso em outra coisa. Sonho com isso, até. A qualquer instante, do nada, meus pensamentos se voltam para o mesmo assunto, e eu me esqueço de tudo o que estou fazendo na hora para ficar me lembrando dos momentos bons. Meus dedos tremem, minha boca seca, eu fico aflito e anseio pela hora em que vou poder sair correndo da sala de aula, do trabalho ou de onde quer que eu esteja para saciar essa necessidade quase biológica, já. Eu sei que vou acabar ficando mal por causa disso, mas não consigo controlar. É ridículo, não?

- Nossa, cara, você tem bem apaixonado, hein?
- Apaixonado? Tá louco? Eu tô falando do meu vício em cigarro!

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Cuide-se

Não
Como em tão pouca letra cabe tanto sentir?
Tão pequena palavra que explode o coração –
Na-não, na-não, na-não

"Não és bom o bastante" – abriram-se as chagas
Sente o sangue fluir
Coagula, não cura
Pois pra se reabrir, basta um olhar
Ver tomarem a vaga que devia ser sua
E não é.

E a bile cor de inveja
Derrama-se em cada ferida
Ardendo, corroendo,
Em conflito co'a educação.

Ah! É tão pequena a palavra
Que explode o coração.

(o título do poema foi baseado na obra Prenez soin de vous, da artista francesa Sophie Calle, e inspirado pelo blog Tomás German like Sophie)

Poema de 18 de abril de 2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Equilíbrio dinâmico

Roda a roda e não vai a lugar algum. Sempre lá, repetindo para sempre o mesmo movimento, presa a seu eixo, sem sequer decidir seu próprio trajeto. Ela roda, apoia, freia, derrapa, se desgasta, às vezes fura. Mas continua rodando sem sair do lugar.

Isso não quer dizer que o movimento é em vão. A roda deixa sua marca no asfalto, o asfalto deixa sua marca na roda. O ônibus se desloca, e como! E a paisagem do lado de fora das janelas muda gradativamente. Pessoas sobem, pessoas descem, nem mesmo o trocador e motorista permanecem. E as rodas lá, rodando.

Elas ligam pra quem sobe e quem desce? Não. Nem um pouco, na verdade. Elas só sabem uma coisa ou outra. Por exemplo, que quando tem muita gente é mais difícil. Fica mais pesado, elas se desgastam mais. E quando tem menos gente é mais tranquilo, mas não tem tanta graça. Não tem o burburinho de conversa, o barulho de vida, nenhum movimento além do seu próprio rodar.

Não é como se o importante fosse quantidade e não qualidade. E também não é como se houvesse uma competição de qual passageiro é melhor. É que eles são justamente isso: passageiros. É preciso saber disso e ter certo desapego. Eles só sobem porque pretendem descer em algum lugar mais pra frente. E quando descerem, outros entrarão, só para saírem dali a tantos metros.

É um ciclo que vai se repetindo sempre, assim como as rodas, que, permanentes, vão rodando.

domingo, 3 de abril de 2011

Aquário de Paguros

Paguros são bichinhos pequenos e insignificantes da fauna marinha cuja maior realização é serem estudados por alunos de segundo ano que viajam para o litoral a fim de aprender biologia marinha. São pequenos caranguejos, tão pequenos que cabem na ponta do dedo, e vivem em conchas abandonadas de outros animais.

O objetivo da concha, obviamente, é proteção. Quando os tais alunos que estudam biologia marinha tiram-nos das pedras em que costumam ficar, na beira da praia, eles recolhem suas minúsculas patinhas para dentro das conchas, em pânico. O resultado é que eles ficam parecendo pedrinhas que causam uma vontade enorme de dar-lhes um peteleco. Quando se vê só a concha, é fácil esquecer-se do bichinho mole lá dentro.

Dois anos atrás eu viajei para o litoral a fim de estudar biologia marinha. Quando fui apresentada aos paguros, fiquei fascinada. Eles eram tão bonitinhos e agradáveis subindo pelos meus braços com as patinhas de fora! Eu gostei tanto que cheguei até a pensar em ter um aquário deles.

Não tenho. Em parte porque daria muito trabalho, mas principalmente porque tenho percebido, de uns tempos pra cá, que trouxe comigo vários paguros. Sempre estive rodeada por uma espécie diferente deles, com uma concha especial, e de tempos em tempos encontro um novo no meio do meu dia a dia. Quando os descubro, me arrependo de todos os petelecos que eles já tomaram de mim.

Se eles se arriscassem a por as patinhas para fora, ou mesmo a abandonar as conchas, talvez fosse mais fácil identificá-los. Mas eles não querem ser identificados. Eles têm medo, eu acho, e alguns se convencem de que são, realmente, bichinhos insignificantes. Esses, pra mim, são os mais lindos. É pena que entram em conchas tão diferentes de si mesmos que dificilmente tenho chance de vê-los.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Ponto de vista

Ele era o adolescente "estranho". All star, camisa xadrez mesmo no verão e fones sempre no ouvido, tocando Belle & Sebastian. Se considerava a pessoa descrita em Expectations, exceto pelo fato de que era um garoto, e se matinha a distância dos bobalhões de tênis chiques que ouviam música pop. Eles faziam piada do seu jeito recatado e da arte que ele apreciava. Babacas! Não tinham competência para entender, então desdenhavam.

Cresceu, casou-se, e esposa anunciou que estava grávida. Imediatamente, viu seu menininho vestindo uma camiseta do Velvet Underground, com aqueles mini all stars nos pés. Esperou ansiosamente pelo fim dos nove meses, alimentando o sonho. O menino veio, para a sua alegria, e deus os primeiros passos guiado pelo pai.

Quando fez sete anos, pediu para entrar no futebol. O pai, que não era fã de esportes, relutou, mas acabou cedendo, pela saúde do menino. Esse foi apenas o primeiro desentendimento.

O menino só queria saber de ver TV e jogar futebol. Não curtia música, cinema ou literatura. Na pré-adolescência, cedeu ao bombardeio da mídia e pediu um iPod de aniversário. O pai comprou e colocou todas as suas músicas preferidas antes de entregar. O garoto formatou o aparelho e pôs a playlist mais tocada da MTV.

Durante os anos seguintes, as brigas eram frequentes enquanto o pai assistia em silêncio agoniado ao filho se tornar o que ele desprezara quando adolescente. Boné de aba reta, correntinha no pescoço, tênis de skatista. Quando tentava fazer com que o filho assistisse a algum de seus filmes preferidos, o rapaz ria e dizia que o filme era chato e sem sentido.

Pesaroso, ele concluiu que se filho estava se tornando um babaca. E que tinha que fazer algo a respeito daquilo.

No dia seguinte à sua conclusão, chamou o filho para conversar quando ele chegou da escola.

O garoto chegou animado, mas fechou a cara quando o pai disse que não gostava de seus amigos, e estourou quando disse que suas roupas e músicas eram ridículas e vazias.

- Eu me identifico com elas! – ele replicou. – Isso faz de mim um cara vazio também?

- Faz! É justamente esse o problema! – o pai falou com frieza assustadora. O rosto do rapaz se avermelhou e ele começou a tremer.

- Por que você se esforça tanto para me fazer igual a você e menospreza quem eu sou? Não somos todos iguais!

O pai recuou um passo, como se tivesse levado uma bofetada. Teve um flashback de um adolescente magrelo numa camisa xadrez gritando aquelas mesmas palavras para um grandalhão que lhe atirava um balão d'água. Depois percebeu que o grandalhão se parecia com ele e estremeceu.

Olhou para o filho, zangado e magoado, e por um instante voltou à adolescência.

Ele encerrou a discussão naquele ponto e, daquele dia em diante, as brigas cessaram.

-x-

Gente, pode comentar, eu não mordo. (Adicionado em 25/03/2011 às 19:47)

sábado, 12 de março de 2011

Para o menino da tatuagem na panturrilha

A @melissish veio me mostrar esse texto que ela escreveu. Eu adorei e emprestei o espaço do blog pra ela postar, porque sou uma boa samaritana e porque adoro colocar outras vozes aqui. Tenho uma tag só pra isso, aliás!

Eu passeava pela casa prendendo o cabelo e pensando em como ele podia ser menos loiro, com sorte menos liso e que podia prender mais fácil. Entrei no quarto, e antes de fechar as portas do armário pra econder a bagunça, eu juro, vi você ali, lendo um dos meus livros e com a cara de sono mais linda do mundo. E, antes que você pudesse dizer qualquer coisa, qualquer reclamação sobre a minha mania boba de manter os livros organizados pelo tamanho, eu ia te pedir num tom sério pra você não abri-los num ângulo maior que 65º, por favor, já era a milésima vez que eu te pedia isso. E eu ia me esforçar ao máximo pra não começar a rir, só pra ver você rir bem lindo sobre a minha seriedade incoerente e displicente.

Eu fazia questão de escovar os dentes na sua frente, de às vezes não dar bom dia pros seus vizinhos no elevador, de sair de havaianas, pra que você visse que eu não era perfeita como você dizia. E fazia questão também de reclamar do seu cabelo mal penteado e das suas manias de organização e da sua falta de paciência, pra que você não achasse que era tão perfeito quanto na verdade era.

Não me doeu quando eu substituí as suas fotos nos porta-retratos, joguei fora o nosso primeiro ingresso de cinema nem quando eu mudei seus contatos no celular. É que tem tanto de você em mim que algumas coisas pequenininhas assim não fazem muita diferença. O sofá da sala, por exemplo, é todinho seu. O copo azul do homem aranha não podia ser de mais ninguém além de você. E a janela da sala? Era pra lá que você ia quando a gente discutia por qualquer motivo, era pra lá que você ia quando tava com algum problema e era pra lá que você ia quando o meu time ganhava.

Outras mudanças foram feitas devagarzinho, pra que a casa se acostumasse aos pouquinhos com a sua ausência. Não tem mais porquê manter uma coleção de filmes do Almodóvar na estante embaixo do dvd. Nem motivo pra esperar você me buscar pra gente almoçar. Semana passada eu jantei biscoito recheado quase todos os dias, porque sabia que não ia ter você pra reclamar. E quando as calorias desses biscoitos chegarem, também não vai ter você pra dizer que me prefere assim, mais com cara e corpo dos quase dezessete anos que eu tenho.

Mas olha, eu me sinto muito bem por ter que enfrentar a escuridão das noites de sábado sozinha. E por ter que aprender quando a gente deve comprar outra resistência e quando deve-se mesmo comprar outro secador de cabelo – e em ficar feliz com isso. Porque foi de tanto conviver com você e com esses dois mundinhos castanhos escuros que você leva no rosto que eu aprendi a enxergar várias outras coisas bonitas também. E toda vez que eu entro no quarto e vejo os meus livros organizados eu fico feliz em saber que foi com você. Só podia ter sido com você.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Pupilas dilatadas

Cá estou eu de novo, depois de uma ausência insensível (ou não) e longa. Desde a última vez em que eu estive aqui, algumas coisas aconteceram. Listemo-as:
1. Passei na Federal.
2. Viajei pra João Pessoa.
3. O blog fez aniversário de um ano (ainda tô pensando num jeito de comemorar!)
4. Aproveitei minhas férias.
Ou seja, estive ocupada, além de ter tido um baita bloqueio. De qualquer forma, estou de volta. Ao texto!

Pupilas Dilatadas

Ela ouviu passos no começo da rua. Com um "merda" abafado pelo cachecol, apagou o cigarro no muro atrás de si e o jogou na calçada. Eram mais de três horas da manhã e aquela rua era sem saída. Não era pra ter ninguém por ali.

Estava escuro, então ela não fazia ideia de quem estava se aproximando. O nevoeiro denso que se instalara na cidade havia alguns dias também não ajudava. Aliás, por um lado ajudava, porque ela também ficava oculta, mas por outro lado ela não via quem se aproximava. Não via nada ao seu redor, na verdade.

Os passos ficaram mais altos e um corpo emergiu da escuridão. Alto, meio gordinho por causa do casaco. Ela conhecia aquele rosto, e se aliviou um pouco.

Ele não disse nada. Apoiou-se no muro, ao lado dela, e estendeu a mão.

- Dá um cigarro. – foi a sua resposta ao olhar confuso que a menina lhe lançou.

Ela enfiou a mão no bolso do casaco e puxou o maço e o isqueiro. Acendeu dois cigarros: um para ela, um para ele. Os dois não falaram nada. A fumaça que sopravam misturava-se à neblina cada vez mais espessa.

Quando a garota estava quase invisível ao seu lado, ele falou:

- Sumiu da escola.

- Não vou voltar. – a voz da menina veio de um lugar distante, ou estava muito fraca.

Ele deu um trago no cigarro e soprou a fumaça. Observou enquanto ela saía pelo seu nariz e percebeu que a névoa começava a se dissipar. Virou o rosto para o lado e encarou o vulto da menina.

- Não é do teu feitio fugir da raia. – provocou. Ele ouviu a garota bufar.

O vulto sumiu na neblina de novo.

- Quem te disse que to fugindo?

- Você certamente não. – ele encarou o lugar onde sabia que a garota estava. – Você só sumiu. Sem explicar nada.

Ela não respondeu. Os dois mergulharam em silêncio de novo. Ele baixou os olhos para onde estaria a calçada e tentou fazer anéis de fumaça. Ela fungava de vez em quando.

- Como foi que você me achou? – ela perguntou. Ele ergueu o rosto da calçada e encarou o vulto.

- Eu via tua cara antes de você sair da escola. Se fosse fugir, tinha que ser pra uma rua dessas.

- É onde eu estou, não é? Num beco sem saída. – ele conseguia discernir partes do rosto dela, agora, como o nariz e os olhos, que não estavam ocultos pelo cachecol. Ele praticamente via o nevoeiro se dissipar.

- Expressão engraçada, "beco sem saída". – sua voz assumiu um tom solene e ele puxou o cigarro da boca, segurando-o nos dedos. – Quer dizer, pode até não levar a lugar nenhum, mas que tem saída, tem.

Ele via o rosto da garota muito bem agora, e pôde notar seus olhos arregalados em sua direção, esperando pelo final da frase.

- É só dar meia volta.

Ela baixou o olhar para a calçada e a névoa voltou a engrossar. Antes que engolisse a garota, contudo, ela tornou a diminuir até dissolver-se por completo.

Ele podia ver o rosto da menina, virado em sua direção, com clareza. Tanta clareza que era capaz de discernir duas emoções em seus olhos: vergonha e pânico.

Em um movimento, ela puxou a mão dele e a colocou em sua barriga. O contato foi breve. Em questão de segundos ele se lembrou do que ainda segurava entre os dedos e o jogou no chão.

- Sabe, se você continuar se rendendo a isso, ele vai acabar com você. – ele pisou no cigarro. O silêncio se seguiu àquilo, mas pelo menos a névoa havia ido embora.

- Teu pai não tá puto contigo. – ele encarou a menina. – Por ter largado a escola.

- É? Mas eu estou. – a resposta veio seca e trêmula.

- Por isso que tá aqui?

Ela bufou e bateu o pé no muro com força.

- Não. Saí porque to aqui. Porque não importa em que droga de lugar eu esteja, eu me sinto sempre aqui!

Ele foi delicado o bastante para ignorar as lágrimas que caíam pelo rosto dela. Imaginou se o nevoeiro voltaria; achava que sim.

- Meu pai largou a escola. – ele não estava olhando para ela quando disse isso: encarava o final da rua. – Não sei por quê. E hoje ele é um grande empresário. Deu três vezes mais trabalho e o risco foi muito maior, mas deu certo.

Ele pegou a menina pelo pulso enquanto falava e a puxou até o fim da rua. Lá estava muito mais escuro do que qualquer outro lugar, então ele não viu a expressão de pânico e mágoa no rosto dela.

Soltou seu braço e se abaixou. Estava de fato muito escuro ali, e ele teve que confiar apenas no tato até as pupilas se dilatarem. Por fim achou o que procurava.

Fez sinal para que a menina se abaixasse. Ela o fez, com o cigarro pendendo debilmente entre os lábios. Suas pupilas ainda não estavam dilatadas, então ela não viu o buraco. Olhou para o rosto dele na penumbra exigindo uma explicação.

- Tem um buraco no muro. – ele apontou, e então, com esforço, ela viu. Sua boca se abriu de surpresa e o cigarro caiu sem que ela notasse.

- É um pouco estreito e você provavelmente se arranharia, mas com esforço dá pra passar. – continuou, avaliando o tamanho. Ele conseguiu espremer os dois ombros, mas não passou para o outro lado. Retrocedeu e olhou para a menina. – Agora vamos pra casa?

Ela assentiu. Os dois se levantaram e começaram a caminhar a passos lentos na direção do começo da rua. No meio do caminho havia uma lixeira. Ela parou, jogou o maço de cigarros dentro dela e retomou a caminhada.