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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Para os muitos Yoshis por aí

Te vi andando na rua outro dia, mas você não me viu. Eu estava de um lado da calçada e você do outro, acho que foi por isso. E você estava no celular, também, discutindo alguma coisa importante. Eu acho que era importante, pelo menos, porque você estava com aquela ruga entre as sobrancelhas que só aparece quando você está falando de algo importante. Pensei em acenar pra você, mas achei melhor não. Você não ia ver. E você estava no celular.

Fiquei feliz de te ver. Você está mudado. Cortou o cabelo e desistiu daquele bigode que, desculpa a sinceridade, estava meio ridículo. Gostei mais assim. Acho. Achei que gostaria. Achei estranho te ver com aquele uniforme também. Meio surreal, meio imaginário. Não estava esperando te ver tão grande.

Queria que você não estivesse no celular. Queria que você tivesse me visto, agora que eu estava até bem arrumadinha, voltando da faculdade. Lembra da última vez em que a gente se viu? Foi lá em casa, um tempo atrás. Você veio visitar meus pais – claro que não vinha me visitar -, falar que vocês iam ser colegas de profissão, pedir dicas e esse tipo de coisa. Foi logo depois de sair o resultado do seu vestibular. Do segundo. Veio sozinho, sem o seu pai, apesar de que tinha anos que os meus pais não te viam. E que a gente não se via.

Não sei se você lembra, mas eu fiquei discretamente com os braços na frente do corpo o tempo inteiro. É que eu estava usando uma camiseta do Paramore e não sabia o que você achava da banda. Não queria que você me achasse ridícula. Não muito, pelo menos. Acho que ridícula você já me achava desde o dia em que eu briguei com você e comecei a chorar sem te dar a menor explicação. Eu tinha doze anos na época e era a maior chorona, mas você era paciente.

No dia que você foi lá em casa você já estava distante. Eu te dei um abraço pra te dar os parabéns por ter passado e foi rápido, mas eu percebi que você tinha um cheiro. Uma mistura de sabonete, loção pós-barba e jogo de Super Nintendo. Tudo bem, talvez eu tenha imaginado o cheiro do jogo de Super Nintendo. Você sabe de qual cheiro eu estou falando, não é? Aquele típico, de quando a gente tirava os cartuchos da caixa quando você ia lá em casa. Até hoje eu não sei de onde ele vinha, pra mim é cheiro de jogo de Super Nintendo e ponto.

Ainda tenho os cartuchos. E eles estão exatamente no ponto em que você deixou. Nunca fui muito boa com videogames, apesar de adorar. Acho que era por isso que eu te chamava tanto pra jogar comigo. Eu precisava de alguém pra destravar as fases pra mim, pelo menos no começo. Depois eu comecei a te chamar porque era divertido. E você começou a vir sem ser chamado.

Você era meu melhor amigo e eu te admirava. Você era legal, era inteligente, era mais velho, sabia muito de videogames. Você era, de certa forma, tudo o que eu queria ser. E você tinha paciência comigo, com a minha adoração irrefreável, com as crises de choro de uma criança de sete anos e, mais tarde, com as bipolaridades de uma garota começando a entrar na adolescência com uma queda monumental pelo melhor amigo. Você agüentava meus ataques gratuitos, meus surtos de ciúmes infundados, minha fria indiferença quando eu cismava que, por você não ver que eu estava apaixonada por você, eu tinha o direito de descontar minha frustração em cima de você.

Mas você via. É claro que via! Via e, pensando no meu bem, fingia que não via pra não ter que me pedir pra parar com aquilo e criar algo estranho entre nós. Você sempre foi gentil comigo, meu amigo até o final. E é justamente por isso que eu me esforcei para não te perdoar por ter desaparecido. Não vi quando foi, só quando já tinha sido. Percebi porque minha mãe, fazendo limpeza nos armários, encontrou meu Super Nintendo, que a gente já tinha abandonado muito antes de se abandonar, mas que eu continuava associando a você. E de repente a sua ausência se fez presente, e muito.

E eu fiquei tão frustrada, e magoada, e ressentida por você simplesmente ter ido embora, que fiz um monte de besteira, uma atrás da outra. E a situação foi se complicando e eu fui me encaminhando para os piores meses da minha vida. E tive que passar por eles sozinha, porque você tinha desaparecido. Mas eu aprendi a viver com a sua ausência. Sua memória passou a me bastar e, depois daqueles meses infernais, os anos que se seguiram foram tempos de calmaria. Mudei; cresci; enquanto você, em algum lugar da cidade, fazia o mesmo, separado de mim. Mas eu cresci com um você, um você Frankstein que eu havia criado costurando remendos de lembranças que eu tinha de você.

No dia que você foi lá em casa, eu fiquei na sala todo o tempo em que você esteve lá. Não reparei que o você que estava ali, de carne e osso, já era diferente do você que eu havia criado para suportar sua ausência. Eu conversei com você como conversava às vezes com a minha memória, e disse a mim mesma que não percebia que suas respostas eram diferentes das que eu costumava responder por você em minha imaginação. Eu deixei você tomar a última Coca da geladeira e desliguei o meu computador antes de sair do quarto. Eu devia realmente gostar muito de você.

Te vi andando na rua outro dia, e de repente comecei a pensar nisso tudo. E, à medida que pensava, minha vontade de te chamar foi ficando cada vez menor. Você nunca quis terminar aqueles jogos, nem pensou que talvez eu precisasse de ajuda para terminá-los. Você não me chamou nenhuma vez, em todos aqueles anos. Quantas vezes aquela mesma situação já podia ter se repetido ao contrário, você no meu lado da calçada e eu resolvendo algum problema importante? Aposto que você me viu passando na rua um monte de vezes, com o meu celular grudado na orelha ou os meus fones afundados no ouvido, e nunca me chamou.

Então eu disse pra mim mesma que você não me viu porque estava no celular, e continuei andando. Descobri que gosto mais do seu bigode porque, quando você foi lá em casa, eu substituí o você de quinze anos que eu tinha visto pela última vez pelo você de dezenove com bigode, e não quero ter que atualizar a imagem de novo.

Não quero substituir mais nada. Não quero aceitar racionalmente que não precisava ter ficado preocupada com a minha camiseta, porque você não a veria – você mal me viu, mas eu não quero aceitar isso. Não quero conhecer esse novo você, porque sei que vai ser uma pessoa muito diferente do você que eu conheço e – sim, ainda – amo. Talvez isso seja um pouco autodestrutivo, ficar insistindo nesse sentimento tão Platônico que o próprio Platão não entenderia: amo alguém que não existe mais, talvez nem tenha existido! Nada pode ser mais autodestrutivo que isso.

Mas eu preciso disso. Eu preciso dessa pequena fantasia pra me ajudar a levar os dias muito secos, assim como quando eu criei esse você fantasma para me ajudar a superar aqueles meses ruins. Até eu encontrar uma maneira melhor, algo real, esse meu pequeno lapso de insanidade é o que me impede de mergulhar de vez na loucura. Enquanto eu não confundir o meu você com o seu você, eu não tenho com o que me preocupar.
E naquele outro dia, porque eu observava as suas costas se afastarem pela rua cheia, o celular ainda grudado na orelha, meu coração ficou subitamente mais leve.


Esse texto, bastante para o meu desapontamento, é quase todo ficcional. Apesar de algumas coisas terem sido extraídas de fatos verídicos (por exemplo: eu era uma chorona com 12 anos, eu de fato tenho uma camisa do Paramore e eu guardo meu Super Nintendo com carinho e amor até hoje), a maior parte dele é apenas uma maneira de "me ajudar a levar os dias muito secos". Eu não tenho nenhum melhor amigo de infância pelo qual fui apaixonada (apesar de que tive um amigo quando era pequena que sempre me ajudava a passar as fases no Super Nintendo – aliás, Gabriel, se um dia você ler isso, não se preocupe, hein? Pura ficção), não encontrei nenhum conhecido na rua recentemente, e não tô nem aí se não gostam da minha camisa do Paramore.

domingo, 11 de setembro de 2011

Qual é o ponto?

A única coisa que percebo, a princípio, é o barulho engraçado das solas dos meus All Stars gastos contra o chão – tap, tap, tap, tap. Meus pés escolhem esses caminhos sem me perguntar. E esse ritmo também, na verdade. Eles sentem a urgência antes que eu mesma tenha tido tempo de processá-la. Eles correm e não ligam se eu tenho dificuldade para acompanhar, desde que acompanhe.

Geralmente eu perco a conta de quantas vezes foi por um triz. De quantas vezes desviei na última hora porque me precipitei, ou de quantas vezes aquele momento de hesitação teve que ser compensado com mais urgência do que meus pés já tinham assumido. Esses pequenos momentos de risco, de quase, sempre me fazem questionar se o resultado compensa isso tudo.

Minhas pernas sempre reclamam. Minha barriga também. Inevitavelmente eu respiro pela boca – gente com os sinos nasais afetados precisando de mais oxigênio vai invariavelmente apelar pra esse recurso – e aquela dorzinha na lateral da barriga sempre vem me fazer companhia, dando um alô a cada inspiração.

Isso sem falar na figura ridícula que eu faço. Aquela mochila enorme e pesada balançando às costas, me fazendo desengonçada e me atrasando. A calça caindo, quase sempre, me deixando praticamente nua – talvez nem tanto, tudo bem, mas a sensação é de total exposição -, e o único jeito que tenho de evitar isso é aumentando o ridículo da minha situação e correndo enquanto seguro a calça.

Aí aparece aquele buraco ordinário – aquele, que sempre aparece enquanto a gente corre e tudo a nosso redor é um mero borrão – e eu afundo meu pé com tudo. Estico os braços como um pássaro para tentar recuperar o equilíbrio, mandando a calça – e tudo o mais - às favas. E aquele momento em que meu coração resolve parar, em que meu corpo fica suspenso no ar, aquele é um momento em que dá pra achar um pouco de paz. Enquanto meu corpo cai – lá vem o clichê – em câmera lenta e descreve um arco, tão gracioso quanto possível com uma mochilona nas costas, no ar, eu sei que não há nada que eu possa fazer a respeito disso. Deixo para a inércia e para a gravidade a tarefa tão urgente de me impulsionar adiante e aproveito a sensação de quase vôo, de liberdade. De paz.

Mas cedo demais meus pés tocam o chão de novo – as solas dos tênis fazendo taps particularmente altos – e meus pés retomam o controle, correndo com ainda mais urgência, a despeito da dor insistente na minha barriga, da queimação no meu nariz por causa do ar seco demais, das reclamações das minhas pernas de que já basta de correr, da mochila balançando pra cá e pra lá nas costas, da calça caindo, da dor do tornozelo machucado pelo buraco ordinário. Apesar de desejar com todas as forças voltar para aquela sensação libertadora, ou pelo menos parar de correr, apesar de odiar tudo o que se relaciona àquela atividade dolorosa para o meu corpo e minha moral, apesar de mal me lembrar de quando e por que eu comecei com aquilo, eu continuo correndo, guiada pelos meus pés, que, naquele momento, sabem mais do que eu.

Quando finalmente chego no meu ponto, não há sensação de alegria, nem de vitória, nem de ter conseguido vencer uma etapa. Só o alívio de ter parado, o consolo barato de saber que fiz apenas o necessário para ter um pouco de conforto que não era assim tão necessário, uma necessidade louca de descansar e a pergunta ainda mais ordinária que aquele buraco: será que valeu a pena?

Às vezes tenho a impressão de que estou constantemente correndo pra pegar ônibus, e eu não podia muito bem ir andando?