Fiquei feliz de te ver. Você está mudado. Cortou o cabelo e desistiu daquele bigode que, desculpa a sinceridade, estava meio ridículo. Gostei mais assim. Acho. Achei que gostaria. Achei estranho te ver com aquele uniforme também. Meio surreal, meio imaginário. Não estava esperando te ver tão grande.
Queria que você não estivesse no celular. Queria que você tivesse me visto, agora que eu estava até bem arrumadinha, voltando da faculdade. Lembra da última vez em que a gente se viu? Foi lá em casa, um tempo atrás. Você veio visitar meus pais – claro que não vinha me visitar -, falar que vocês iam ser colegas de profissão, pedir dicas e esse tipo de coisa. Foi logo depois de sair o resultado do seu vestibular. Do segundo. Veio sozinho, sem o seu pai, apesar de que tinha anos que os meus pais não te viam. E que a gente não se via.
Não sei se você lembra, mas eu fiquei discretamente com os braços na frente do corpo o tempo inteiro. É que eu estava usando uma camiseta do Paramore e não sabia o que você achava da banda. Não queria que você me achasse ridícula. Não muito, pelo menos. Acho que ridícula você já me achava desde o dia em que eu briguei com você e comecei a chorar sem te dar a menor explicação. Eu tinha doze anos na época e era a maior chorona, mas você era paciente.
No dia que você foi lá em casa você já estava distante. Eu te dei um abraço pra te dar os parabéns por ter passado e foi rápido, mas eu percebi que você tinha um cheiro. Uma mistura de sabonete, loção pós-barba e jogo de Super Nintendo. Tudo bem, talvez eu tenha imaginado o cheiro do jogo de Super Nintendo. Você sabe de qual cheiro eu estou falando, não é? Aquele típico, de quando a gente tirava os cartuchos da caixa quando você ia lá em casa. Até hoje eu não sei de onde ele vinha, pra mim é cheiro de jogo de Super Nintendo e ponto.
Ainda tenho os cartuchos. E eles estão exatamente no ponto em que você deixou. Nunca fui muito boa com videogames, apesar de adorar. Acho que era por isso que eu te chamava tanto pra jogar comigo. Eu precisava de alguém pra destravar as fases pra mim, pelo menos no começo. Depois eu comecei a te chamar porque era divertido. E você começou a vir sem ser chamado.
Você era meu melhor amigo e eu te admirava. Você era legal, era inteligente, era mais velho, sabia muito de videogames. Você era, de certa forma, tudo o que eu queria ser. E você tinha paciência comigo, com a minha adoração irrefreável, com as crises de choro de uma criança de sete anos e, mais tarde, com as bipolaridades de uma garota começando a entrar na adolescência com uma queda monumental pelo melhor amigo. Você agüentava meus ataques gratuitos, meus surtos de ciúmes infundados, minha fria indiferença quando eu cismava que, por você não ver que eu estava apaixonada por você, eu tinha o direito de descontar minha frustração em cima de você.
Mas você via. É claro que via! Via e, pensando no meu bem, fingia que não via pra não ter que me pedir pra parar com aquilo e criar algo estranho entre nós. Você sempre foi gentil comigo, meu amigo até o final. E é justamente por isso que eu me esforcei para não te perdoar por ter desaparecido. Não vi quando foi, só quando já tinha sido. Percebi porque minha mãe, fazendo limpeza nos armários, encontrou meu Super Nintendo, que a gente já tinha abandonado muito antes de se abandonar, mas que eu continuava associando a você. E de repente a sua ausência se fez presente, e muito.
E eu fiquei tão frustrada, e magoada, e ressentida por você simplesmente ter ido embora, que fiz um monte de besteira, uma atrás da outra. E a situação foi se complicando e eu fui me encaminhando para os piores meses da minha vida. E tive que passar por eles sozinha, porque você tinha desaparecido. Mas eu aprendi a viver com a sua ausência. Sua memória passou a me bastar e, depois daqueles meses infernais, os anos que se seguiram foram tempos de calmaria. Mudei; cresci; enquanto você, em algum lugar da cidade, fazia o mesmo, separado de mim. Mas eu cresci com um você, um você Frankstein que eu havia criado costurando remendos de lembranças que eu tinha de você.
No dia que você foi lá em casa, eu fiquei na sala todo o tempo em que você esteve lá. Não reparei que o você que estava ali, de carne e osso, já era diferente do você que eu havia criado para suportar sua ausência. Eu conversei com você como conversava às vezes com a minha memória, e disse a mim mesma que não percebia que suas respostas eram diferentes das que eu costumava responder por você em minha imaginação. Eu deixei você tomar a última Coca da geladeira e desliguei o meu computador antes de sair do quarto. Eu devia realmente gostar muito de você.
Te vi andando na rua outro dia, e de repente comecei a pensar nisso tudo. E, à medida que pensava, minha vontade de te chamar foi ficando cada vez menor. Você nunca quis terminar aqueles jogos, nem pensou que talvez eu precisasse de ajuda para terminá-los. Você não me chamou nenhuma vez, em todos aqueles anos. Quantas vezes aquela mesma situação já podia ter se repetido ao contrário, você no meu lado da calçada e eu resolvendo algum problema importante? Aposto que você me viu passando na rua um monte de vezes, com o meu celular grudado na orelha ou os meus fones afundados no ouvido, e nunca me chamou.
Então eu disse pra mim mesma que você não me viu porque estava no celular, e continuei andando. Descobri que gosto mais do seu bigode porque, quando você foi lá em casa, eu substituí o você de quinze anos que eu tinha visto pela última vez pelo você de dezenove com bigode, e não quero ter que atualizar a imagem de novo.
Não quero substituir mais nada. Não quero aceitar racionalmente que não precisava ter ficado preocupada com a minha camiseta, porque você não a veria – você mal me viu, mas eu não quero aceitar isso. Não quero conhecer esse novo você, porque sei que vai ser uma pessoa muito diferente do você que eu conheço e – sim, ainda – amo. Talvez isso seja um pouco autodestrutivo, ficar insistindo nesse sentimento tão Platônico que o próprio Platão não entenderia: amo alguém que não existe mais, talvez nem tenha existido! Nada pode ser mais autodestrutivo que isso.
Mas eu preciso disso. Eu preciso dessa pequena fantasia pra me ajudar a levar os dias muito secos, assim como quando eu criei esse você fantasma para me ajudar a superar aqueles meses ruins. Até eu encontrar uma maneira melhor, algo real, esse meu pequeno lapso de insanidade é o que me impede de mergulhar de vez na loucura. Enquanto eu não confundir o meu você com o seu você, eu não tenho com o que me preocupar.
E naquele outro dia, porque eu observava as suas costas se afastarem pela rua cheia, o celular ainda grudado na orelha, meu coração ficou subitamente mais leve.
Esse texto, bastante para o meu desapontamento, é quase todo ficcional. Apesar de algumas coisas terem sido extraídas de fatos verídicos (por exemplo: eu era uma chorona com 12 anos, eu de fato tenho uma camisa do Paramore e eu guardo meu Super Nintendo com carinho e amor até hoje), a maior parte dele é apenas uma maneira de "me ajudar a levar os dias muito secos". Eu não tenho nenhum melhor amigo de infância pelo qual fui apaixonada (apesar de que tive um amigo quando era pequena que sempre me ajudava a passar as fases no Super Nintendo – aliás, Gabriel, se um dia você ler isso, não se preocupe, hein? Pura ficção), não encontrei nenhum conhecido na rua recentemente, e não tô nem aí se não gostam da minha camisa do Paramore.
É, é quase todo ficcional, mas se eu tivesse a habilidade incrível com as palavras que você tem, seria quase que auto-biográfico, rs. Anotei vários trechos, você falou verdades inspiradoras :)Parabéns por mais um texto ótimo!
ResponderExcluir(Isa aqui)
Caralho, acho que foi a coisa mais foda que você já escreveu. E acho que de vez em quando vou ler ele de novo, pra me dar vontade de continuar.
ResponderExcluirMandou bem demais mesmo, Paulinha.
Uau! Está tão bem escrito que é difícil acreditar que isso não aconteceu de verdade. Um dos seus melhores, com certeza! Adoro essa composição com períodos curtos. Caraaamba, adorei mesmo!
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