- Oi, oi, espera!
Ela se virou, levemente curiosa, mas nada mais. O garoto estava respirando um pouco descompassadamente e olhava para ela com intensidade. Ela sentiu um impulso de afastar o rosto e erguer a sobrancelha, e lutou contra ele. O coitado do garoto não lhe fizera nada.
- Pois não? – não conseguiu evitar que a voz saísse irônica. Já era hábito.
O garoto pareceu não notar a ironia, ou ignorá-la. Estendeu a mão. Segurava um quadradinho amarelo.
- Eu queria que você ficasse com isso.
Ela olhou para baixo para examinar o quadradinho. Não demorou a reconhecê-lo como um cartucho de Game Boy Color – Pokémon Yellow. Seu estômago afundou quando a imagem que corria pela internet lhe veio à mente – um print screen de um grupo de 6 pokémons chamados "Você", "quer", "sair", "comigo", "?". Ela achara a ideia linda quando vira a foto, mas agora entrava em pânico enquanto encarava o pequeno quadrado amarelo.
- Não. Não, não, não, não, não! – sem olhar no rosto do garoto, saiu correndo apressada por entre os corredores da vídeo-locadora, sua voz ficando mais esganiçada cada vez que ela repetia a palavra.
Ele a alcançou assim que ela saiu para a rua.
- Por que não?!
- Você nem me conhece! – ela se virou para trás, dessa vez olhando no rosto do garoto para que ele entendesse que ela falava sério. Ele estava exasperadamente calmo.
- Eu sei. Mas eu falei com uma...
Antes de ele terminar de falar, ele sabia que ela havia falado com uma vidente, e que a adivinha os tinha apontado como almas gêmeas. E, de alguma forma, ela sabia que era verdade.
Seu coração se apertou, em negação. Não queria aquilo, nada daquilo. Não queria uma alma gêmea, não queria estar ligada àquele garoto que sequer conhecia. Mas ele não fizera nada para ela – mas ela não queria, não o conhecia e não queria conhecer.
Era ele na porta de seu prédio, ela sabia. O porteiro dissera ao interfone "um garoto com uma cesta enorme". Só podia ser ele. Ela desceu, a contragosto, apenas pela noção de responsabilidade, com o coração mais apertado a cada andar que o elevador descia.
Era ele.
Seu porteiro a desencorajou. Ela mal ouviu suas palavras. Atravessou o hall decidida, apesar da dor no coração, e saiu para a rua.
Ele tinha um sorriso enorme no rosto e estendeu a cesta.
- Pra você.
- Não quero.
O rosto dele nunca se abalava, não importava o quanto ela negasse. Ela se virou para não ter que encarar seu sorriso e começou a entrar no prédio.
Ele a chamou pelo nome.
Como ele sabia?
Ele não explicou. Convidou-a para um passeio. Seu porteiro a desencorajou de novo. Ela ignorou de novo. Concordou com o passeio, contanto que ele desistisse da cesta. Ele a pousou na calçada. Os dois começaram a caminhar; primeiro em silêncio, aquele silêncio inquieto de quem tem muito a dizer, aquele silêncio pesado de quem tem muito a ouvir.
Ela sentia que ele esperava pelas suas palavras, mas não conseguia falar nada. Seu coração apertado batia em sua garganta, roubando-lhe a voz. Olhou para ele, pedindo ajuda, e ele sorriu, sabendo que um dos muros que ela havia construído entre eles havia caído.
Em pouco tempo (pouco? O sol discordava) estavam de volta à porta do prédio. A cesta ainda estava no mesmo lugar. O porteiro já tinha ido embora.
Ele olhou para ela. Seu coração doía mais do que nunca. Sentia-o comprimido, pressionado pela intensidade do olhar do garoto à sua frente. Desviou os próprios olhos, encarou o chão, e sentiu-o se afastar. Ergueu os olhos de novo para vê-lo atravessando a rua, indo embora.
O nome escapou-lhe aos lábios antes que ela soubesse como o sabia.
Ele parou ali, no meio da rua, e olhou para trás. Pela primeira vez, seu rosto estava abalado.
Ela foi até ele quase correndo. A intensidade no olhar dele se fora e isso a enchera de urgência.
Ela engoliu forte para devolver o coração ao peito e reuniu coragem.
- Não daria certo. – falou num fôlego só. Ele se aproximou um passo e ela repetiu seu nome, como advertência. – Não pode dar certo, porque...
Por quê? Eles terminaram de atravessar a rua em silêncio enquanto ela lutava em sua mente para responder a essa questão. Por quê? Antes era porque não o conhecia. Mas acabara conhecendo-o, não fora? E tinha gostado de conhecê-lo. Ele a divertira e a fizera rir, ele não desistira dela quando ela mandara que o fizesse, e ele claramente a amava.
Ela gostara do pequeno passeio, e havia uma cumplicidade inegável entre os dois. Mas ambos diferiam em alguma coisa, em algum ponto crucial. Ele abraçara o que acreditava ser o destino dos dois. Ela repudiava aquela ideia, contestara-a desde o princípio.
Ela procurou-o com o olhar, talvez apenas para encará-lo, talvez para falar tudo o que sentia. Mas não o achou. De repente a rua estava cheia de gente, lotada, e uma música estourava caixas de som. Ela procurou-o na multidão sem saber por quê. Sentia que as pessoas a empurravam em direções opostas, como ondas num mar revolto.
Não era só o coração que ela sentia apertado, agora. Tentou sair da multidão, queria chegar em casa e esquecer aquele dia tão prazerosamente horrível. Abriu caminho na multidão como se nadasse, sem nunca conseguir alcançar a margem. Todos queriam cumprimentá-la, apertar sua mão, apoiar sua escolha, parabenizá-la, criticá-la, dizer que era tola, que aquilo deveria ter bastado.
Ela fechou os olhos com força e gritou, gritou que queria sair dali, que não queria nada daquilo, que não queria jogo nenhum, cesta nenhuma. Ouviu a voz de seus pais dizendo que fora a síndica que mandara, que não podia ficar jogada em qualquer canto do prédio.
Ela abriu os olhos. Tinha conseguido chegar em casa; estava em seu apartamento de frente para seus pais. A cesta estava entre eles.
- Não era pra trazer isso pra cá! – gritou, esganiçada. Seus pais se justificaram de novo – a síndica mandou, a síndica quis. Sem dizer palavra, agarrou a cesta pela alça e saiu de casa, tomou o elevador e apertou o 12. O elevador parou no 9; ela apertou o botão de novo, mas a luz sequer se acendeu.
Ela socou o botão, exasperada, mas o elevador zombava dela, não obedecia. Apertou o 8, ele foi para o 3; apertou a garagem, ele foi para o 12. A porta não abriu.
Ela gritou, em desespero, a dor sempre-presente no coração sufocando-a; minando suas forças, deixando-a encolhida e frágil no chão do elevador.
Acordou do sonho como quem acha a superfície depois de se afogar. Não sabia onde estava, sua respiração estava descompassada, seus olhos, muito abertos, e ela ouvia o pulsar de seu coração em seus ouvidos.
Levantou-se. A blusa colava no seu corpo suado. Um raio de luz entrava pelas cortinas entreabertas. Ela foi até a janela. Estava escurecendo.
O que tinha sido aquilo? O sonho se esvanecia com a rapidez com que o sol se punha. Ela tentou reter as lembranças, mas já estava escuro antes de ela conseguir reconstruir a história. Rendeu-se. Foi até o banheiro e fitou sua imagem no espelho. Um único pensamento passou pela sua cabeça: deveria bastar?
Seu coração se apertou.
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